José Saramago, o Boca do Inferno
Por Antônio Serpa do Amaral Filho (*)
Se Friedrich Nietzsche estiver certo, Deus está morto e José Saramago também. O duelo de titãs acabou. Calaram-se as cordas vocais do provocador de conflito entre Criador e criatura. Partiu o pregador solitário, cuja voz, embora contida e já carcomida pelo tempo, reverberava em todos os quadrantes do planeta, como se fosse uma praga enviada pelo anti-cristo. Se a transcendentalidade da alma de fato existe, uma hora dessa ambos já estão se entendendo, traçando prosa amena em algum lugar do além. A cena é relicária, nos conta Raul Seixas: lá vem Deus deslizando no céu entre plumas de mil megatons, marchando ao encontro do espírito de um certo zé escrivinhador que viveu na Terra e que ousou negar a existência do Divino.
Agora, se a transcendentalidade é conversa pra boi dormir, então Deus é só um delírio e sua ideologia não serve apenas de ópio ao povo, mas traveste-se de verdadeiro tratado que provoca cegueira nos olhos da humanidade, carente, perplexa e infeliz. O homem não é imagem e semelhança de Deus; Deus é que é a imagem e semelhança dos anseios do homem.
Quase imortal, José Saramago foi-se embora enfrentando a paradoxal radicalidade da vida: a morte – angústia de quem vive, fim de quem ama, diria Vinícius de Morais. A pena do falecido escriba lusitano arvorava-se ferina e viçosa, combativa e denunciadora, e com ela Saramago desafiou a Santa Madre Igreja, o Papa e todos os santos da terra. De porte de sua arma quase letal, comportava-se como verdadeiro espadachim em guerra nada santa¸ digladiando com os anjos de Deus e ideólogos do Vaticano no deserto do ceticismo exacerbado, por onde trafegam pouquíssimos ou quase nenhum peregrino. Estão todos percorrendo o caminho de São Tiago de Compostela, curtindo aventura, arte e misticismo. É preciso ter inabalável fé nas suas convicções para ser um ateu de verdade. Mas em que pese a grandeza de seu espírito em negar a existência de Deus, o ateísmo não era a única característica palpitante e polêmica do Prêmio Nobel em literatura, na seara da língua portuguesa. O idioma de Camões ganhou as manchetes e traduções em todas as línguas do mundo, graças à perene inquietude alojada no coração do escritor.
Em suas veias corria muito pouco sangue e seu olhar revelava-se como vitrais estilhaçados, pontiagudos e cortantes, oferecendo perspectivas obtusas, anômalas e inusitadas aos seus leitores. O autor de o Evangelho Segundo Jesus fez do cristianismo seu pano de fundo predileto, na elaboração de seus textos, por entender que a literatura antes de ser ato de criação é principalmente atitude de destruição, decretação de falência de parâmetros conceituais e palpitação tresloucada de espírito de porco que insiste em chafurdar na lama da sociedade dos homens. O criado de Jangada de Pedra assumiu, por fé na descrença das entidades metafísicas, sua fidelidade aos ideais humanistas. Não de forma mecanicista, porém de maneira criativa e machadianamente bem humorada, negou Deus para afirmar o Homem como senhor da vida. Sua palavra literária tinha raízes profundas na terra em que pisava. Por isso não precisava ser panfletário para mostrar que o Rei está vestido, e rico, e que passa bem, obrigado; nu mesmo estão o séquito e a multidão que observam sua majestade, o sistema político-econômico que controla a idiotice e a vassalagem na República Socialista do Guaporé e em todo o mundo. No Brasil, não chegou a tomar posse como Sócio Correspondente da Academia Brasileira de Letras. Morreu como qualquer mortal, reafirmando com seu gesto ser a finitude o grande bem da vida. O não-sentido é o sentido da existência. Ou se faz justiça social aqui e agora ou ela nunca será realizada, porque não existe nem Deus nem projeto divino para o homem. O homem não tem pai, só tem mãe: a História. Deus é utopia, promessa de ungüento para curar ferida de desesperados e peneira com a qual se tenta tapar o sol dessa dura realidade.
É uma das sínteses a que se pode chegar, captando nas entrelinhas o que escreveu o Boca do Inferno da contemporaneidade, o crítico dos críticos, José Saramago. E já que o autor de Caim se foi, e ficamos nós a matutar sobre o imbróglio ontológico da existência, por via das dúvidas: que Deus o tenha!!
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